Texto: Você está a meio mundo de distância
- Dani Santos
- 26 de mai. de 2018
- 3 min de leitura

Você está a meio mundo de distância.
Fujo.
Escondo-me atrás dos escombros de mim mesma. Cansada desta velha cidade. Nada cheira bem aqui. Gostaria de deixá-la para trás. Eu posso sentir os sinais de alerta me rondando. Tudo está despedaçado. Meu corpo é jovem, mas minha mente é tão velha.
O que você me diz?
Ali, bem ali no meio daqueles destroços costumava ter uma árvore. Tinha também um balanço de madeira. Se eu pudesse me concentrar, conseguiria ver a criança de cabelos negros num vaivém infinito. Cachos balançando em sintonia com o vento.

Você não pode me dar os sonhos que são meus de qualquer maneira, ela sussurra. E então aqui vou eu. E quando eu deixar esse planeta, você sabe que eu adoraria ficar, mas simplesmente não suporto... Você está a meio mundo de distância. Tudo será redescoberto. Eu ainda tenho as lembranças daquela criança saltando do balanço, sendo lançada na vida sem quaisquer manuais de instrução. Mas eu continuo presa a este grande buraco velho e fedido. Cujas paredes manchadas sufocam-me com os resquícios da minha breve existência. Há fotografias antigas coladas e papeis de anúncio. Daquele dia na praia, em que comemos cachorro-quente enquanto ouvia aquela doce voz dizer que eu não poderia retornar ao mar em seguida. Faz mal. O agridoce momentâneo perdeu-se aos poucos. Eu estive perdida, fui encontrada, mas não sinto isso.
O que você me diz?
Os anúncios promovendo leituras vorazes da janela do ônibus repleto de desconhecidos. Eu gostaria de lembrar-me das palavras, da sensação de desbravamento, à medida que o caminho final era traçado sem aviso. Mas você, você está a meio mundo de distância e aqui só restou destruição. O caos sufoca-me ao passar dos segundos. Se eu pudesse sair desse estado de espírito, eu encontraria uma casa e viveria nela. Deixaria em outrora, tudo à qual um dia pertenci. As memórias não se resumiriam a saudade, porque eu não estaria mais nesta ilha. Então aqui vou eu. Percorrendo as ruínas deste velho lugar, corro. No entanto, estou machucada. Minhas pernas estão cansadas. Os braços carregam consigo longas cicatrizes das vezes que tentei fugir, mas sempre fracassei. Eu insisto. Preciso insistir. Estou sozinha, você me deixou aqui, a meio mundo de distância. Sem um mapa. Gostaria de encontrar um barco e remar, com o resto das minhas forças para qualquer outra cidadezinha. Deixaria que as águas que nunca chegaram a me fazer mal me levassem. Porque você esteve aqui, bem antes, num tempo perdido. Sussurrando conselhos e divagações. Mas agora, você também está a meio mundo de distância. O som da sua voz é como a música do nosso disco preferido tocando antes de dormir. Ela está cada vez mais inaudível. Talvez a nossa vitrola tenha quebrado e esteja no meio dos escombros. Eu fui encontrada, mas não sinto.

O que você me diz?
Este sonho é meu. Vejo-o se transformar num pesadelo assustador. Eu te disse, os sinais estavam me rondando. O sol vai despencando no horizonte e eu posso ver o mar se aproximando, majestoso. Lembro-me do tronco da minha árvore preferida e que eu nunca mais o veria como parte de um todo, da árvore, que um dia fora parte de mim, junto do balanço, que também pertencia a nós. Recordo-me das fotografias desbotadas. O biquíni amarelo de florzinha que usei naquele dia e dos anúncios que se despregavam da parede solitária que restara naquela bagunça. Eu finalmente posso me concentrar, um pouco mais, para ter a certeza de que está a meio mundo de distância. Meu corpo é jovem, embora minha mente seja tão velha e ela sabe, sabe que você não voltará. Continuaremos existindo em épocas diferentes. E eu preciso sair desta velha cidade fedida. Meus pés calejados aproximam-se da água. Conchas sob eles quebram-se e afundam na areia. Vejo um barco adiante e sigo em frente. Destemida. Eu gostaria apenas, que tivesse escrito uma carta, enviada endereçada à cidade das almas perdidas, dizendo que estava a meio mundo de distância, exatamente igual a mim. Evitaria tanto sofrimento. E eu saberia que além de não voltar para mim, para esta cidade, eu também não poderia fugir ao seu encontro, como inutilmente o faço agora, pois ela está dentro de mim.
O que você me diz?
Então aqui vou eu.
Atravessando o caminho para fora de mim mesma.
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